Foto capa: Claudio Kirner por Pixabay
A regulamentação da Lei 14.017/2020, denominada Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, voltada para o atendimento emergencial a artistas, técnicos, organizações culturais e comunidades e expressões tradicionais, saiu na última terça-feira. Esse regramento é essencial para que a lei de emergência avance para estados, municípios, instituições do setor, artistas e técnicos.
As discussões dentro do Congresso Nacional para a tramitação e aprovação da lei foram extremamente rápidas e coordenadas, com a aprovação quase unânime tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado em um intervalo de apenas 13 semanas. Entretanto, embora aprovada, a regulamentação que deveria orientar sobre detalhes operacionais da execução dos três bilhões de reais liberados saiu recentemente e com sérias lacunas para a operacionalização, deslocando para estados e municípios o ônus de negociar com procuradorias e órgãos de controle.
O texto final da regulamentação também acabou saindo diferente do acordado com as entidades municipalistas e os fóruns de secretários estaduais e municipais de cultura, fazendo com que estados e municípios tenham que correr contra o tempo para fazer sua parte, receber os recursos e iniciar os repasses, com as precariedades que temos nas gestões. Ocorre que temos outros desafios além da longa e lenta espera dessas definições.
A maioria dos municípios brasileiros nunca executou valor minimamente próximo ao que terá que executar durante o período emergencial, o que está gerando um desgaste nas estruturas estaduais e municipais em pleno período de pandemia. A isso, soma-se a proximidade das eleições municipais como questão complicadora que resulta em um quadro que aumenta a ansiedade dos que esperam os benefícios.
Alguns elementos do Decreto estão sendo debatidos e até criticados pelas instituições municipalistas e de estados, que acordaram outros desenhos com os ministérios do Turismo e da Economia, cabendo ressaltar alguns deles. Um dos pontos controversos foi vincular a homologação dos cadastros estaduais via Dataprev e Ministério do Turismo, sem dizer como e quem faria isto. O documento aponta que “(…) a lista de cadastros federais homologados será publicada em canal oficial do Governo federal”.
Além de deixar em aberto e sem orientação específica, trouxe expressamente a penalização do gestor que fizer o pagamento de forma equivocada, criando um vácuo jurídico que muitos gestores, em ano eleitoral e fim de mandato, não querem ou não tem respaldo dos jurídicos municipais para assumir.
Temos um panorama complicado que une a falta de estrutura e recursos humanos técnicos nos municípios e o abismo entre a estrutura jurídica e legal brasileira, os órgãos de controle e a realidade de artistas, técnicos e grupos de expressões de culturas populares. Há grupos de municípios que simplesmente querem terceirizar para consultorias externas a “elaboração dos editais e regulamentações”, e outros em situação ainda pior, com seus gestores preocupados com as exigências dos órgãos de controle, aventando a hipótese de não usar o recurso por medo, deixando que esse volte para o estado.
Outra situação preocupante foi a restrição ao envolvimento dos conselheiros de cultura. Ao definir que todos os agentes públicos são enquadrados formalmente como empregados e, portanto, sem direito a acessar os recursos, penalizou-se ainda mais os que tentam contribuir gratuitamente na construção de políticas públicas de cultura via conselhos, uma vez que os conselheiros são considerados agentes públicos por lei federal. Várias reuniões virtuais sobre o significado deste artigo deixaram conselheiros em alerta, inclusive com vários ameaçando deixar seus mandatos para poderem participar, sob a alegação que já atuam gratuitamente e, no momento da emergência cultural, não poderão receber o auxílio ou participar de qualquer edital.
A previsão de “aquisição de bens e serviços públicos” com o recurso da lei emergencial deveria ser uma das principais novidades que a lei trouxe, mas a falta de regulamentação específica deixa os municípios com diversas inseguranças de natureza jurídica: o que pode ser adquirido? Como comprovar a aquisição? Deve ser seguida a lei de licitações para estas aquisições?
O momento expõe questões que deixam clara a fragilidade da institucionalização de proteção da diversidade cultural nesse contexto da pandemia: Como exemplo, centenas de espaços culturais pelo país que já fecharam as portas em consequência das restrições causadas pela pandemia da COVID-19 e um sem número de comunidades tradicionais, quilombolas, técnicos e ações de cultura solidária e cultura alimentar estão, em certa medida, correndo o risco de não acessarem o recurso pelo fato de os governos em geral terem cadastramentos defasados, fragmentados e que não dialogam entre si. Há dois exemplos concretos das implicações disso, que são as comunidades quilombolas e os circenses.
Atualmente, há 2.788 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares, sendo 311 em Minas Gerais. Entre 2019 e 2020, os processos de certificação praticamente pararam, somando apenas 88 nos dois anos citados. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) há cerca de 6.330 comunidades, ou seja, menos da metade se encontra cadastrada. Sem cadastro, não há como receber recursos.
A situação dos circenses também é delicada, com 645 circos cadastrados no país e 9.492 pessoas neles. Segundo dados da Associação Brasileira do Circo (Abracirco), há cerca de 2.000 no Brasil, mas a maioria não se encontra nos cadastros oficiais, totalizando mais de 2/3 dos circos que não existem nos cadastros. Mais uma vez, sem cadastro, nada de receber recursos. Há o complicador que não há circo tradicional sem aglomeração e itinerância, então estes circos se encontram completamente sem amparo, com raríssimas ações de distribuição de cestas básicas para eles.
Esses são apenas alguns exemplos das dificuldades para o apoio emergencial às artes profissionais e comunidades vulneráveis e que, durante este período pré e pós regulamentação, correm o risco de não serem beneficiadas pelo recurso porque o Estado brasileiro não conseguiu, passados 10 anos da aprovação do Plano Nacional de Cultura, realizar o mapeamento e cartografia das diversas áreas da cultura ou ter o mínimo de articulação federativa, o que agora faria toda diferença. A regulamentação saiu, mas a invisibilidade de muitos artistas, técnicos e comunidades tradicionais e a insensibilidade do Estado e dos órgãos de controle permanecem como desafio às políticas de proteção e promoção da diversidade no país.
CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO – Boletim 101, nº 01/2024 Cultura Viva: 20 anos de uma política de base comunitária Período para submissão: 13 de março a 23 de junho de 2024 A Revista Boletim Observatório da Diversidade Cultural propõe, para sua 101ª edição, uma reflexão sobre a trajetória de 20 anos do Programa Cultura Viva […]
O Observatório da Diversidade Cultural, por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, patrocínio do Instituto Unimed, realiza o ciclo de formação GESTÃO CULTURAL PARA LIDERANÇAS COMUNITÁRIAS. Período de realização: 10, 17 e 24 de outubro de 2024 Horário: Encontros online às quintas-feiras, de 19 às 21h00 Carga horária total: 6 […]