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De quem é a vida? Impasses entre a autonomia do médico e do paciente

hemacias

*Janaína Aredes

 

Nesse breve artigo vou me valer de uma experiência em campo que tive durante minha pesquisa de mestrado[2] num hospital de urgência e emergência em trauma. Num serviço de Pronto Socorro são admitidos pacientes sem distinção sociocultural. Para os profissionais envolvidos no atendimento, o foco sempre está direcionado ao restabelecimento da vida do paciente. Bom, mas isso não garante uma equidade no atendimento. Aqui vemos conflitos e limites entre a autonomia médica e a do paciente. O médico se depara com uma tensão entre a ética profissional, cujo princípio é salvar a vida e o respeito a uma liberdade religiosa, garantia constitucional; porém, o direito à vida também está prescrito na constituição. itarei o exemplo de pacientes adeptos a religião Testemunhas de Jeová que procuram tal serviço.  Bem se sabe que os fieis a essa religião têm como um de seus costumes a recusa incondicional a hemotransfusão (transfusão de sangue), crença esta baseada em fundamentos bíblicos, segundo a qual isso é negado mesmo em risco de morte.

Fato é que, em um hospital de urgência e emergência, cujo atendimento se restringe a traumas advindos de acidentes e lesões das mais diversas, é muito comum encontrarmos pacientes que, necessariamente, precisarão de hemotransfusão. Presenciei vários desses casos e digo que o assunto é bastante polêmico entre os atores diretamente envolvidos: médicos, pacientes e familiares.

A família ou o paciente geralmente avisa aos médicos sobre a religião antes do atendimento, mas isso é feito apenas em casos mais brandos, pois muitas são as situações em que os pacientes já chegam em estado de iminência de morte, inconscientes, e os médicos ministram os procedimentos cabíveis a sua função sem consultar a família, sendo a comunicação sobre a transfusão sanguínea  realizada após o atendimento. É compreensível a posição do médico que está alicerçada no modelo biomédico, característico da cultura ocidental moderna, devido ao controle sobre o corpo e a doença. Ora, o paciente chega em condição agônica e a função médica, dentro de uma instituição hospitalar, é salvaguardar a vida.

Nos casos em que o paciente corre risco de morte num período posterior e não iminente, o paciente ou a família são avisados antes sobre a transfusão sanguínea e, nesse momento, o médico fica sabendo sobre a restrição, iniciando-se uma tensão entre as duas partes. Neste mesmo hospital, uma criança que sofrera um acidente de moto precisou de sangue durante uma cirurgia na perna, mas o ortopedista negou a hemotransfusão, por receio de possíveis punições legais por parte da família. A cirurgia foi realizada, mas ela ainda precisava de sangue, caso contrário, morreria em poucas horas. Quando deu entrada à UTI, a pediatra de plantão disse que realizaria a transfusão sanguínea mesmo com a recusa da família.

O procedimento em casos de criança é ligar para o Juizado da Infância e Adolescência para liberação da hemotransfusão, ficando o médico autorizado judicialmente, sem risco de futuros processos, principal temor de alguns profissionais. No entanto, uma médica me disse que, mesmo se não houvesse esse amparo judicial, realizaria o procedimento da mesma forma: “Fizemos um juramento pela vida dos nossos pacientes, não posso deixar uma pessoa morrer sabendo que eu poderia ter feito alguma intervenção. Eu prefiro ser processada por ter salvado a vida de uma pessoa do que ser processada por omitir atendimento”. Os pais foram avisados e alegaram que a criança, também adepta a religião, não suportaria ficar sabendo que recebeu sangue de outra pessoa. Segundo a médica, “fazemos de tudo para tentar respeitar, no nosso limite, a religião. Colocamos um pano em cima da bolsa de sangue para que a criança, ao acordar da sedação, não perceba que está sendo hemotransfundida”.

Respeitar um desejo do paciente pode levar o médico a participar de uma situação que pode culminar na morte. Mas, a quem pertence a vida, afinal? Cabe ao médico decidir e ficar acima da escolha do paciente? E a autonomia de todos os cidadãos que se diz salvaguardada por uma sociedade plural? Além disso, como garantir o respeito à diferença num Sistema de Saúde que é Único para todos, mesmo recebendo pacientes de grupos socioculturais dos mais diversos? O assunto envolve várias esferas e a proposta aqui, longe de esgotar, é trazer a reflexão sobre um tema muito frequente nos hospitais públicos que envolve os direitos constitucionais, o respeito à liberdade religiosa, a ética do profissional de medicina e o sistema de saúde para o qual ele presta serviços.

*Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012-2014) e bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2010). Tem experiência na área de Antropologia Urbana e Antropologia das Sociedades Complexas, com ênfase em Antropologia da Saúde e da Morte, Bioética e Educação Ambiental

 

[2] Pesquisa de mestrado (2012 a 2014) realizada no Hospital de Pronto Socorro João XXIII localizado na cidade de Belo Horizonte, MG.

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