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Futebol LGBT em busca de legitimidade

Na quarta-feira do último dia 28 junho, dia do orgulho LGBT, o canal à cabo ESPN exibiu o terceiro e último capítulo da série “Futebol Fora do Armário”, abordando a presença LGBT dentro do universo do futebol brasileiro, um esporte que arrebata milhões de adeptos no nosso país, sendo, portanto, praticado por uma infinidade de grupos, mas que, no entanto, coleciona práticas machistas e homofóbicas, por ser considerado um esporte “para homens”.

Os três episódios apresentam a angústia de milhares de pessoas que gostam do futebol – seja atuando profissionalmente em um clube, torcendo para o time de coração, ou até mesmo praticando o esporte – e se apresentam contra uma lógica que permeia o esporte de que, para se expressar através deste, tem que ser hétero, másculo e viril.

Há quem pense que o futebol é um lugar sagrado, livre de qualquer ideologia política, de orientação sexual ou de gênero, muito pelo contrário: o futebol tende a ser o esporte mais preconceituoso de todos. O adjetivo gay no meio do futebol é usado, em grande escala, para insultar alguém, podendo ser uma das maiores ofensas, utilizada ao meio a outras tantas palavras chulas e de baixo calão. No meio do futebol, o termo é sempre utilizado para insultar, diminuir e excluir. No entanto, existe um contingente enorme de brasileiros que gostam do futebol, mas que não apresentam o perfil hétero, e estão no esporte em “um silêncio que aprisiona”.

O primeiro episódio intitulado A homofobia e a dificuldade de assumir a homossexualidade no vestiário contextualiza a dificuldade de jogadores profissionais de se assumirem gays. Só depois que encerram a carreira é que estes atletas, de forma tímida, assumem sua homossexualidade. Segundo a produção do programa, eles tiveram sérias dificuldades para conversar com os atores sociais envolvidos com o esporte. A psicóloga do Santos Futebol Clube começa a sua entrevista com a repórter da ESPN, Gabriela Moreira, dizendo que a menor aproximação da feminilidade com a virilidade dos homens tende a ser catastrófica, na visão destes, em relação a imagem e reputação destes atletas. “Respeitar as diferenças”, esta pauta, segundo a psicóloga, deveria estar presente na agenda de todos os clubes do Brasil. O futebol, como prática social, é celebrado por seus adeptos como um espaço de inclusão e encontro das diferenças.

Em uma entrevista, em 2013, para Amanda Romanelli, do jornal O Estado de São Paulo, o antropólogo Wagner Xavier Camargo, estudioso da relação entre esporte e gênero, vinculado na época à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), afirmou que “o esporte não é lugar de inclusão, pelo contrário, é excludente por natureza”. Nas palavras do antropólogo, este discurso de inclusão é vazio, pois “o esporte é uma instituição segregadora de gênero, em que não se admite a ideia que haja outro (gênero) que não seja o masculino, o dominante.”

Devido a superexposição midiática e penetração em vários estratos da sociedade brasileira, estes clubes de futebol poderiam ser instâncias para se problematizar o assunto. No entanto, os clubes não se posicionam em relação ao tema. E, quando o fazem, deixam bem claro o que pensam sobre o assunto. O meia Richarlysson, que atuou por clubes como São Paulo e Atlético Mineiro, hoje no Guarani de Campinas, quando apresentado pela equipe, foi hostilizado pelos torcedores do próprio clube e da rival Ponte Preta. Um vereador e dirigente da equipe pontepretana ironizou a contratação do atleta por meio de uma rede social assim: “jogador certo no time certo”.

O futebol coleciona casos de racismo ao longo dos anos, tanto que um artigo fora incluído, em 2009, no código disciplinar do Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). O artigo 243-G prevê pena de suspensão e multa para dirigentes e jogadores ligado ao futebol que tem suas leis regidas por este código, por “Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.” Dentro do campo de jogo, para que aja as punições, os árbitros devem relatar estas condutas dos jogadores na súmula do jogo. No entanto, eles não relatam, pois, tal conduta “faz parte do jogo”.

Depois da Copa de 2014, jogava no Brasil e vencida pela seleção alemã, a torcida mexicana deixou um legado homofóbico para os torcedores brasileiros. Quando um goleiro do time adversário ia cobrar um tiro de meta, os torcedores gritam a palavra “bicha”. Tal conduta caiu no gosto dos torcedores que já entoam cânticos racistas e homofóbicos contra os torcedores rivais nos estádios brasileiros. Consequentemente, a Federação Internacional de Futebol Associação (FIFA) está impondo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) que pague uma multa a cada vez que for soado este canto nos estádios brasileiros. Para não pagar esta multa, a CBF argumenta que estas ofensas são práticas culturais e costumeiras realizadas a muito tempo pelos torcedores brasileiros.

O segundo episódio Torcida Livres mostra a façanha de gays, lésbicas, transgêneros, transexuais, bissexuais, travestis de ir até os estádios e torcer para o seu time de coração. O risco de ser reconhecido na arquibancada por alguém por conta de sua orientação sexual pode levar a agressões de toda a ordem. Estes indivíduos, a cada partida, utilizam-se de estratégias para ir aos jogos.

Eles se camuflam para ficar “invisíveis”. Segundo um dos torcedores que prestou depoimento na série, ao falar como é ser gay em um estádio de futebol, o mesmo expressava com amargura a diferença entre estar e pertencer. Como fazer parte de uma torcida que ofende a torcida rival com ofensas homofóbicas? Uma partida de futebol, para quem assiste e torce, é uma misto de alegria e raiva. Como proceder e se expressar em estádio de futebol sendo gay sem ser hostilizado e ofendido?

O psicólogo Jacques Jesus (2003) afirma que o grupo constituído pelos homossexuais é considerado como aquele que tem a “diferença invisível”, tendo em vista que homossexuais não podem ser tão objetivamente identificados como os membros de outros grupos historicamente excluídos, a exemplo dos índios, negros e as mulheres, “pois a diferença é psicossexual, não física”.

Mesmo com tantos indícios que dizem que um estádio de futebol é um ambiente “impróprio” para homossexuais, iniciativas de resistência estão tomando conta dos estádios, ainda que de forma tímida. Uma espécie de ativismo esportivo é apresentada nos estádios com torcedores de Palmeiras, em São Paulo, e Internacional, no Rio Grande do Sul. Uma torcida organizada do Flamengo e do Paysandú, de Belém do Pará, estão trabalhando junto a seus membros uma campanha para abolir cânticos racistas e homofóbicos no estádio. No final do episódio, em meios a vários torcedores do Flamengo, se encontrava a figura do controverso senador Jair Bolsonaro, político da extrema direita que não esconde o que pensa sobre a causa LGBT.

No terceiro e último capítulo, “Orgulho Futebol Clube”, a matéria apresenta times de futebol formados, em sua totalidade, por jogadores gays. Times de “peladas” de gays são realidades na capital paulista e fluminense. Este ano, no Rio de Janeiro, aconteceu o primeiro campeonato LGBT do Brasil.

Beesccats Soccer Boys, Unicorns, Natus, Sarradas do Brejo F.C, Meninos Bons de Bola, Rosa Negra, Bearleaders, somadas as outras equipes estiveram presentes ao evento que promoveu o encontro de mais de 400 jogadores LGBT’s. Os encontros, para os membros dos times, é uma maneira de se reunirem para jogar futebol e se reunirem em torno da causa.

Segundo a lógica sexista e homofóbica de pessoas que acham que jogar bola está relacionado com a virilidade masculina, homens gays não aguentariam a dinâmica do futebol por ser um esporte de contato, mais violento, e mulheres lésbicas seriam demasiadamente masculinizadas, deixando a inferioridade para as mulheres héteros, que não disputariam um lance com o mesmo vigor e afinco.

Campeonatos de futebol de homossexuais não são tão raros, tanto que existe um campeonato mundial do gênero. O torneio é organizado pela IGLFA (Internacional Gay and Lesbian Football Association), sendo jogado pela primeira vez em 1982. Segundo a IGLFA mais de 100 equipes espalhadas por 30 países já disputaram os campeonatos desta instituição. Ainda, segundo a IGLFA, a entidade deixou de ser um organizador para ser um apoiador de campeonatos do gênero. O último campeonato foi realizado em 2007, em Londres, Inglaterra e vencido pela equipe argentina do Los Dogos DAG. O próximo campeonato acontece em 2018, em Paris, capital da França. Existem outras organizações que realizam este tipo de competição mundial.

Um outro caso interessante é o time londrino do Stonewall FC que joga na Middlesex County Football League, a 11a divisão do futebol inglês. A jornada é longa, mas o clube pode jogar a Premier League e enfrentar os grandes clubes do futebol europeu como o Chelsea, Manchester United, Liverpool etc. As outras equipes do movimento LGBT não vêm com bons olhos a participação do Stonewall em torneios héteros, tanto que no seu elenco a equipe admite jogadores não gays. A equipe também participa de torneios voltados exclusivamente para atletas gays. Já venceu campeonato europeu e mundial e, no ano de 2014, levou medalha de ouro Gay Games, em Clevland, nos Estados Unidos, e no EuroGames do ano passado, em Estocolmo, na Suécia.

Segundo Jamie Feldman, tesoureiro da equipe do Stonewall FC, nos últimos meses, equipes com a sua, que defendem a bandeira contra intolerância, homofobia e fascismo estão ganhando notoriedade e estão cada vez mais atraindo um número expressivo de torcedores para suas equipes.

Com o objetivo de interagir e se encontrar, o Unicorns FC, equipe amadora formada por pessoas LGTB, de São Paulo, jogam futebol a partir de três premissas: não precisa ser bom de bola, basta gostar do esporte e querer se divertir, a segunda é dar um incentivo para pessoas que gostam de jogar futebol, mas foram e são excluídos do esporte por serem homossexuais; e a terceira é reinvindicar um espaço social ocupado, na sua maioria, por homens heterossexuais. O sucesso da equipe é tão grande que eles fizerem contato com times LGTB’s da Argentina e do México e, para o futuro, pretendem organizar uma Copa América Gay de Futebol. Em uma oportunidade, a equipe do Unicorns FC jogou contra uma equipe de heterossexuais e venceu, causando um princípio de confusão na equipe adversária por ter perdido para uma equipe gay. Situação inadmissível para uma equipe de heterossexuais. Sendo assim, eles deram um tempo neste tipo de jogo.

O psicólogo especialista em Psicologia Transpessoal, Paulo Congo, escreveu um artigo para um site, a Revista do Lado A, intitulado Invisibilidade das Pessoas LGBT. Neste texto, o também doutor em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) afirma que, para haver uma mudança de paradigma em relação a situação de invisibilidade e exclusão dos membros de grupos LGBT, é preciso relacionar o reconhecimento das diferenças de sexo e gênero e a legitimidade das manifestações destes grupos no espaço público, “e isso depende de que um número cada vez maior de pessoas LGBT que expresse a sua orientação sexual, identidade sexual e de gênero sem medo e com orgulho”, salienta.

A partir destes dos três episódios, fica claro que tornar as questões de orientação sexual ou de gênero visíveis através de práticas esportivas, como o futebol, pode ser uma possibilidade de se romper com estes tabus ao propor este tencionamento com as noções dominantes e conservadoras. O futebol, como prática social, pode ser um caminho para novas possibilidades de expressão e afirmação de identidade para pessoas LGBT’s.

 

Imagem: Portal ESPN

Referências:

 

http://espn.uol.com.br/video/706758_futebol-fora-do-armario-nos-campos-de-pelada-o-futebol-lgbt-ja-e-realidade-veja-a-reportagem-final-da-serie

http://revistaladoa.com.br/2015/06/terapia/invisibilidade-das-pessoas-lgbt

http://iglfa.org/

http://www.lance.com.br/futebol-internacional/bilhoes-viram-jogadores-gays-copa-apenas-nao-sabem-disso.html

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1874816-gays-criam-time-de-futebol-reunem-fas-e-confrontam-exclusao-no-esporte.shtml

http://esportes.estadao.com.br/noticias/geral,homofobia-no-esporte-ainda-ganha-de-goleada,1077307

http://revistaladoa.com.br/2015/06/terapia/invisibilidade-das-pessoas-lgbt

http://legado.cbb.com.br/noticias/Novo_CBJD.PDF

JESUS, Jacques. Violência e assassinato de homossexuais e transgêneros no Distrito Federal. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2003, p. 230-249.

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