Antonio Albino Canelas Rubim[1]
Na história do Brasil todos os momentos de mudanças societárias foram acompanhados por movimentos culturais, que traduziam, em uma dimensão simbólica, as modificações da vida social. Estranhamente o processo de mudanças vivido pelo país, desde o ano de 2003, não produziu bens culturais que expressassem tal realidade. Talvez a opção política por um projeto de transformações atenuando conflitos tenha deixado a cultura sem seu substrato mais vital: as tensões humanas e sociais.
Em uma conjuntura em que os conflitos emergem em decorrência das modificações realizadas, mesmo à revelia do apaziguamento dos setores que dirigiram o processo, parecem estar criadas as condições para o surgimento das traduções necessárias, sempre complexas e muitas vezes inesperadas. Walter Benjamin, ao fazer a crítica da linearidade na história, postulou a necessidade de um “choque”, que interrompesse a perspectiva linear, possibilitando a irrupção de centelhas de sentido, condensadas em mônada, acontecimento singular que desvela um novo horizonte de experiências e significados.
O filme Que horas ela volta? de Ana Muylaert interrompe a percepção dominante, linear e simplória, de pensar no século XXI os segmentos explorados como classes perigosas, habitadas pela violência, criminalidade e narcotráfico das periferias urbanas. A cultura brasileira, na televisão e no cinema, reduz olhares e produz classes perigosas. Na vida delas nada mais existe, nada mais importa, nada mais é digno de ser narrado. Elas estão prisioneiras desta visão pré-concebida.
Da mesma maneira que a chegada de Jéssica (Camila Márdila) desestrutura e subverte todos os arranjos da casa em que Val (Regina Casé), mãe de Jéssica, trabalha como doméstica há muitos anos, o filme de Ana Muylaert introduz de modo incômodo outra maneira de acompanhar o movimento dos explorados, não mais como crime e violência. Esta nova modalidade de olhar e de expressar os explorados rompe a linearidade da representação hegemônica e a coloque em xeque. Agora os explorados podem viver outros horizontes.
O contraste entre os modos de encarar a relação empregada e patrões coloca em conflito mãe e filha. Ou como metáfora: duas gerações que percebem estas relações de maneira profundamente desigual. Val, sempre prestativa e carinhosa, mantém uma vida pessoalizada com seus patrões, pois “sabe o lugar” servil que ocupa e internaliza em seu corpo e mente toda a cruel hierarquia social assumida como dado natural. Morar na casa dos patrões em um quartinho de empregada diz tudo sobre a sua privação enquanto indivíduo. Jéssica, filha do século XXI e das mudanças acontecidas no país, vê o mundo de modo totalmente distinto. As relações não são naturais. Em lugar da subserviência, posições afirmativas. Em lugar da reiteração do mais do mesmo, novas oportunidades e perspectivas de vida.
Esta figura, expressiva deste novo Brasil, incomoda e desestrutura o velho Brasil sintetizado na casa de Carlos (Lourenço Muterelli), Bárbara (Karine Teles) e seu filho Fabinho (Michel Joelsas). Sua entrada “sem saber seu lugar” faz aflorar todo o preconceito de classe, escondido pelas “amorosas” relações patrões – empregada. Bárbara reage e tenta conservar a velha ordem hierárquica, agora em perigo. Manda tratar a água depois que Jéssica entrou na piscina. Ela esclarece: teria encontrado ratos na piscina. Jéssica sabe quem é o rato para os dominantes. Bárbara arranja outro pretexto para retirar Jéssica do quarto de hóspedes e delimita seu espaço aceitável na casa: da cozinha para o quarto de empregada. Serão estes desconfortos e conflitos metáforas da situação político-social que vivemos hoje no país?
A presença forte das mulheres (Jéssica, Bárbara e mesmo Val), em visível contraste com a fragilidade dos personagens masculinos (Carlos e Fabinho), por certo deve algo ao roteiro e direção de Ana Muylaert, mas também é expressão de outro Brasil, no qual o protagonismo feminino é cada vez mais visível e relevante. Não é casual que hoje as mulheres ocupem lugares de poder importantes no Brasil, a começar pela Presidência da República.
Apenas um desconforto com o final do filme. A cena da entrada de Val na piscina, lugar antes interditado, e a ligação que faz para parabenizar a filha pelo sucesso no vestibular na USP emergem como metáfora da ruptura. Uma generosa abertura de horizontes. A mais bela rebeldia das novas possibilidades abertas na sociedade brasileira. É possível que as limitações da atual conjuntura brasileira não comportem tal alternativa. A escolha de outro final – Val se demite e propõe à Jéssica trazer seu filho, fruto de uma relação adolescente, para ela cuidar – parece redimir Val por ter ficado tanto tempo longe de Jéssica, criada no Nordeste, com o dinheiro remetido por ela de São Paulo. De qualquer modo outra nação começa a ser traduzida na cultura brasileira. Que horas ela volta?
[1] Pesquisador do CNPq e professor da UFBA.
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