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Todorov e o dilema das diferenças

Por Suylan Midlej*

Ao ler sobre a morte do pensador franco-búlgaro Tzvetan Todorov, no último dia 7 de fevereiro, fiquei ainda mais inquieta com o que tem acontecido no mundo em relação à convivência entre os povos e as diferenças. Todorov, que passou praticamente sua vida inteira refletindo sobre o respeito à diversidade, deve ter partido bem decepcionado. Hoje, cada vez mais, assistimos a uma avalanche de intolerâncias. De todas as naturezas. Em todos os lugares. É como se caminhássemos em direção contrária à evolução da espécie humana. Não que essa evolução seja linear ou talhada para uma harmonia entre as pessoas, mas, no mínimo, esperamos que nosso senso de sobrevivência nos leve a busca de uma melhor convivência uns com os outros. Infelizmente não é o que tem acontecido, embora essa temática venha sendo debatida por autores como Todorov, que nos deixa um legado em vários campos do conhecimento.

Búlgaro, mas vivendo na França desde 1963, Todorov morreu aos 77 anos. Era considerado um dos grandes intelectuais contemporâneos. Linguista, filósofo, historiador, crítico e teórico literário, autor de livros, artigos e ensaios diversos, suas obras discutem temas permeados por uma preocupação com as tendências totalitárias nas democracias contemporâneas, com seus múltiplos desenhos e formatos. Também se dedicou a escrever sobre literatura e poesia, obtendo notoriedade com a obra Introdução à literatura fantástica (Perspectiva, 1975), a qual leva a teoria literária a incorporar o termo, mesmo que não haja consenso sobre essa concepção até os dias de hoje. Deixa no prelo o livro O triunfo do artista, a ser lançado em março deste ano.
Desde sua reconhecida obra A Conquista da América – a questão do outro (Martins Fontes, 1991), Todorov reflete sobre a importância de descobrir o Outro em si mesmo para a convivência com a diversidade. “Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos” (p.3). Para ele, este grupo pode estar contigo em uma sociedade (mulher-homem; ricos-pobres; loucos-“normais” – grifo do autor), ou pode ser exterior a ela, “estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie” (idem). Todorov descreve a “descoberta e conquista” da Meso-América, tendo como narrativa a percepção dos espanhóis sobre os indígenas. Considera a descoberta da América como ”o encontro mais surpreendente da nossa história” por conter o que ele chama de “sentimento radical de estranheza”, o que não ocorreu em relação aos outros continentes, relata o historiador. Outro aspecto que torna esse feito importante é que, para Todorov, 1942 marca o início da era moderna. “Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo” (p.6).
A discussão sobre a alteridade se aprofunda quando Todorov escreve Nós e os Outros – a reflexão francesa sobre a diversidade humana (Jorge Zahar, 1993). A despeito de o título do livro sugerir apenas a percepção francesa e com um recorte espacial específico, a obra vai além, com a análise sobre a relação entre o universal e o relativo, entre a unidade e a diversidade. O livro é um misto de história do pensamento com filosofia moral e política, e baseia-se nas ideias de alguns autores, como Montaigne, Helvétius, Renan e Lévi-Strauss, discutindo suas implicações políticas, éticas e filosóficas, estabelecendo um diálogo entre eles. Etnocentrismo, relativismo, cientificismo, racialismo são temas que perpassam a obra. Todorov atenta para o perigo do que ocorre nas sociedades totalitárias, que é não se discutir com os “que pensam de outra maneira” (p.180). Da mesma forma, o cientificismo, muito próprio dos Estados democráticos, é preocupante, uma vez que os processos decisórios muitas vezes são pautados pelo “progresso científico” ou pela “eficácia tecnológica” (p.181).
Sobre a democracia, Todorov é veemente em dizer que importa mais a maneira como o poder é exercido do que a simples instituição do poder ou a finalidade da sua ação. Ele defende o pluralismo como modelo a ser praticado para o bom exercício da democracia. Dessa forma, os poderes não podem ser confiados às mesmas pessoas ou instituições e devem manter sua independência uns dos outros. Essas ideias são bem debatidas no livro Os inimigos íntimos da democracia (Companhia das Letras, 2012), em que ele anuncia como inimigos o populismo, o ultraliberalismo e o messianismo. Todos eles fruto de alguma forma de “descomedimento”, como o desrespeito ao Outro, proveniente de “uma vontade ébria de si mesma” (p.18). Com isso, as consequências para a democracia são sempre catastróficas.

Outras tantas obras do escritor poderiam ser enumeradas aqui, sejam as que versam sobre linguística e teoria literária ou aquelas sobre filosofia, história e antropologia. Porém, o que considero mais importante ao nos ver diante do vasto patrimônio bibliográfico de Todorov não é descrevê-lo, mas poder adentrar nesse universo pouco a pouco, sabendo que vamos encontrar ideias tecidas cuidadosamente com uma preocupação principal: debater a unidade da humanidade e a pluralidade das culturas. Por tudo isso e por ter redefinido o meu olhar em relação ao outro, recomendo fortemente a leitura desse grande intelectual, Tzevetan Todorov.
* Doutora em sociologia (UnB), mestra em comunicação e cultura contemporâneas (UFBA) e graduada em comunicação social (PUC-MG). É professora do curso de Gestão de Políticas Públicas e do PPG em Administração da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: suylan@unb.br.

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1 Comentário para “Todorov e o dilema das diferenças”

  1. Avatar Marcia Acioli disse:

    Gostei muito e tenho vontade de acessá-lo diretamente.

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