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Corpo de direito: a decisão da mulher quanto ao aborto

Foto capa: Criado por Freepik (Licença gratuita Freepik)

A lei brasileira autoriza que o Sistema Único de Saúde (SUS) realize um aborto quando a gravidez decorre de estupro (Decreto Lei 2848, de 1940), em circunstância de risco para a mãe ou de anencefalia do feto (ausência parcial ou total de cérebro). Com exceção das três situações, o aborto induzido é considerado crime contra a vida humana, previsto pelo Código Penal Brasileiro desde 1984.

No último dia 15 de agosto, a realização do aborto foi autorizada em uma criança de 10 anos que, conforme atestou a Polícia Civil do Espírito Santo, era estuprada pelo tio havia quatro anos e engravidou. No entanto, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes negou o pedido, o que resultou na transferência da vítima para outro estado, para cumprimento da decisão judicial.

A situação da criança aponta para realidade social alarmante. Conforme o DataSUS, é realizada uma média de 26 mil partos de crianças entre 10 a 14 anos por ano. O Atlas de Violência, publicado pelo IPEA em 2014, informa que mais da metade dos mais de 500 mil estupros por ano foram contra meninas de menos de 14 anos.

A pressão contra a decisão legal de interrupção da gravidez da criança ecoou nas redes sociais, principalmente, depois da atitude ilícita da militante de extrema direita, Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter, que divulgou na internet o primeiro nome da criança e o endereço da unidade de saúde onde seria realizado o procedimento médico.  Houve protesto de um grupo católico na porta do hospital onde foi realizado o procedimento.

No artigo “Por que não viver?”, publicado em 17 de agosto, o presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB, dom Ricardo Hoepers, classificou  como crime hediondo o procedimento realizado na criança vítima de estupro. O religioso católico questiona no pronunciamento a garantia do direito à vida: “Por que não foi permitido esse bebê viver? Que erro ele cometeu? Qual foi seu crime? Por que uma condenação tão rápida, sem um processo justo e fora da legalidade? Por que o desprezo a tantas outras possibilidades de possíveis soluções em prol da vida? Foram muitos os envolvidos, mas o silêncio e omissão dos órgãos institucionais que têm a prerrogativa de defender a vida, se entregaram às manobras de quem defende a morte de inocentes. Por quê?”

O acesso ao direito da mulher ao aborto enfrenta resistências ligadas a diferentes setores religiosos representados também por pautas em tramitação no Congresso Nacional que contrariam laicidade do estado brasileiro, como a de obrigatoriedade do ensino religioso (PL 309/2011), da Bíblia (PL do ensino 943/2015 e PL 9164/2017) e do ensino do criacionismo (PL 8099/2014 e PL 5336/2016).

“Cada um profere a sua religião e segue os seus preceitos, a questão religiosa é uma questão privada que interfere nisso, mas não deve vir a público dizer que sim ou não”, considera a professora do curso de Ciências Sociais da Puc Minas, Lucia Lamounier Sena. Ela avalia que a reação contrária ao procedimento legal é uma “ação política clara”, mas não reflete o entendimento de grande parte da sociedade brasileira que “se tivesse tido a oportunidade de se expressar seria no sentido de ser favorável aquela situação”.

Ao permitir o aborto em casos de risco de vida para as mulheres, o Brasil situava-se, em 2019, segundo classificação da organização não governamental Center for Reproductive Rights, na segunda categoria mais restrita no que se refere ao tratamento legal dado ao tema. A ONG mapeia a legislação relacionada ao direito ao aborto em todo o mundo e separa os países em cinco categorias diferentes, de acordo com as restrições existentes. Na categoria mais restrita o aborto é proibido, independentemente das motivações. Há países que consideram critérios de saúde, socioeconômicos ou o pedido do procedimento. A interrupção da gravidez é permitida sem necessidade de justificativas em 66 países, de acordo com o mapeamento.

Para a professora da Puc Minas, a decisão da mulher deve prevalecer. “No que diz respeito à legislação brasileira, deveria ser totalmente revista e o aborto deveria ser colocado em qualquer situação como uma decisão da mulher, sendo ela vítima da violência ou não”, observa.

O Brasil contabiliza mais de 500 mil estupros por ano, entretanto, dados do Mapa do Aborto Legal no Brasil dão conta de que o país disponibiliza apenas 42 hospitais que realizam o procedimento legal. A Portaria 2282, de 27 de agosto de 2020, dificulta ainda mais a realização do aborto, dispondo sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. A lei obriga médicos a avisarem a polícia quando a mulher solicitar a realização do aborto por estupro, o que, para especialistas, intimida pacientes.

De acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados preliminares, a violência de gênero é reflexo direto da ideologia patriarcal sustentada “pela imputação da culpa pelo ato à própria vítima (ao mesmo tempo em que coloca o algoz como vítima) e pela reprodução da estrutura e simbolismo de gênero dentro do próprio Sistema de Justiça Criminal (SJC), que vitimiza duplamente a mulher”.


A definição da legislação sobre o corpo da mulher consiste no “resquício mais forte da estrutura patriarcal que deve ser eliminado”, afirma Lúcia Lamounier. “Por que não há nenhum um tipo de legislação sobre o homem em relação à vasectomia, isso é puramente uma decisão dele, ele faz o que quiser, se a mulher quer ligar as trompas dependendo da idade não pode”, problematiza.

Na sua visão, a legislação deve garantir o pleno direito da mulher quanto à decisão de levar ou não a frente uma gestação. “Em nenhuma situação o direito sobre o corpo deve ser relativizado. As decisões sobre o que fazer ou não fazer no seu corpo são da mulher”, conclui Lamounier.

 

Leia mais sobre o assunto:

Religiosos que questionam aborto não fazem nada para combater estupro, diz teóloga
https://ponte.org/religiosos-que-questionam-aborto-nao-fazem-nada-para-combater-estupro-diz-teologa/

Entidade evangélica condena protestos em hospital onde menina de 10 anos fez aborto legal https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/08/17/interna_nacional,1176763/entidade-evangelica-condena-protestos-em-hospital-onde-menina-de-10-an.shtml

Mulheres cristãs baseiam em sua fé defesa dos direitos reprodutivos e do aborto legal
http://www.generonumero.media/mulheres-cristas-baseiam-em-sua-fe-defesa-dos-direitos-reprodutivos-e-do-aborto-legal/

Aborto: Entenda tudo sobre essa questão
https://www.politize.com.br/aborto-entenda-essa-questao/

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