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Cultura e saúde em tempos de COVID 19

A pandemia da COVID-19 tem evidenciado a relação próxima da cultura com a saúde. No seu enfrentamento, a cultura tem ocupado um duplo e paradoxal papel. Por um lado, enquanto setor econômico, a cultura é um dos mais afetados, com perdas inestimáveis em toda a cadeia produtiva, além de permanecer, pelo menos aqui no Brasil, como um dos setores menos protegidos e atendidos pelas iniciativas públicas nas três esferas. Em Minas Gerais, por exemplo, como medida emergencial pela pandemia o governo promoveu diversos cortes no orçamento e a Cultura perdeu mais de 95% dos recursos previstos para o Fundo Estadual de Cultura.

Os trabalhadores e os negócios da cultura enfrentam hoje graves problemas em decorrência dos efeitos da necessária medida de isolamento social. Porém, até o momento, a não ser por editais paliativos para eventos online, uma ou outra solução emergencial aqui e ali no Brasil, nenhuma medida de proteção e promoção mais efetiva foi criada. Por outro lado, essa mesma cultura abandonada à sua própria sorte é tomada como medida eficaz e necessária, por meio dos milhares de conteúdos criativos disponíveis na rede, para que o isolamento social não gere novos e ampliados problemas de saúde individual e pública.

Entendido como um dos pilares do enfrentamento à pandemia, junto à aplicação de testes e ampliação do número de leitos hospitalares, o isolamento social sem aumento e qualificação do acesso e consumo de bens culturais, abre as portas para o aumento de problemas psicológicos e seus desdobramentos em termos de estresse, violência e depressão.

Somente a conexão oportunizada aos que têm acesso à internet, não garante saúde mental em tempos de isolamento. Seja por meio de atividades presenciais, lúdicas, subjetivas e criativas, seja remotamente, por meio do consumo de bens e serviços culturais pela internet, o isolamento social consegue conter a propagação do vírus, mas abre as portas para outros adoecimentos. O psicólogo do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP, Cristiano Nabuco, comenta em seu blog várias pesquisas já realizadas que identificam os efeitos psicossociais da quarentena, produzindo um aumento dos níveis de sofrimento emocional, ansiedade e sintomas de transtornos de estresse pós-traumático (TEPT).

Há um lado a mais nesta relação cultura e saúde, entretanto. É que, para além do consumo de bens e serviços culturais, tanto o surgimento quanto a propagação do vírus estão relacionados a hábitos culturais, entendidos em seu sentido mais amplo, como formas de pensar e agir relacionados a diferentes e às vezes divergentes modelos culturais. Hábitos culturais comportam valores e concepções de mundo que se traduzem em práticas individuais e coletivas e que, portanto, pautam o dia a dia de uma sociedade. São dinâmicos, mas possuem forte relação com as tradições e com as estruturas sociais. O que isso quer dizer?

Quer dizer que a maioria das pessoas não se colocam em situação de risco por uma opção, mas por necessidades que são tanto econômicas quanto socioculturais. O ser humano é por excelência um ser gregário, ou seja, necessita viver em grupo tanto para sua sobrevivência física quanto subjetiva e espiritual. A condição humana está intimamente ligada ao estar com o outro, a fazer do espaço público a extensão de sua morada e aspirar e necessitar de liberdade. E é justamente este modo – não exclusivo dos humanos, mas por excelência humano – que está em questão, na medida em que pode contribuir para o agravamento da situação.

Hábitos de consumo, de higiene e de sociabilidade além das formas de uso do espaço urbano, estão sob forte atenção. A realização de cultos e missas e até mesmo a complexa ritualística da Páscoa para os cristãos, do  Pessach para os judeus e do Ramadã para os muçulmanos, tiveram suas práticas tradicionais alteradas. Missas virtuais, cerimônias tele transmitidas, vídeo confissões, deixam de ser modismos decorrentes das estruturas sociotécnicas e assumiram um caráter de ação sanitária.

No último dia 27 de março o Papa Francisco protagonizou, no Vaticano, uma cena emblemática desta realidade paradoxal entre a cultura e a saúde, ao conceder a Benção Urbi et Orbi e fazer a leitura das Escrituras e orações de súplica e adoração ao Santíssimo na Praça da Basílica de São Pedro totalmente vazia.

Em entrevista ao Jornal Estado de Minas, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo metropolitano de BH, chamou a atenção para uma dimensão pouco analisada: a necessidade de alterar hábitos culturais pode também oportunizar o reencontro e a atualização das tradições.

Estamos desacostumados da casa, que muitas vezes serve apenas para descansar, guardar nossas coisas, fazer uma ou outra refeição. Agora, no isolamento social, somos chamados a fazer de nossos lares, cada vez mais, casa da palavra, do pão, da caridade e da missão, retomando o início da fé cristã, quando os discípulos de Jesus se reuniam em seus lares, com as suas famílias, para celebrar a fé.

Para além do desenvolvimento de vacinas e testes e sua aplicação maciça na população de risco, bem como da expansão dos serviços de atendimento, a cultura parece ter um papel central. Ora como como mecanismo de sobrevivência psíquica e emocional, ora como reinvenção e atualização das tradições e dos hábitos cotidianos, a diversidade cultural parece ser convocada a um outro desafio: o de assegurar o direito às diferenças, mas também o de reconectar o humano universal.

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3 Comentários para “Cultura e saúde em tempos de COVID 19”

  1. Avatar Francisca Felisardo dos Santos disse:

    A pandemia do covid-19 mudou o mundo, o isolamento social afastou pessoas, uniu famílias. O mundo perdeu pessoas queridas, deixou de se abraçar, ficou em casa…Talvez por essas e outras coisas possamos refletir sobre nossas vidas corridas, sem tempo pra família, sem tempo pra si próprio, sem tempo pra Deus. É preciso refletir, recomeçar, reestruturar…Começar de novo, de forma diferente, se isso não acontecer a pandemia não serviu pra nada.

  2. Avatar Jaqueline Herculano disse:

    A arte sempre teve um papel muito central na compreensão da sociedade, ela emociona, educa, faz refletir, denúncia o estágio de nossa própria humanidade.
    Através da arte podemos nos reconhecer e mesmo estranhar nossas próprias manifestações sejam elas coletivas ou individuais.
    Infelizmente vivemos em um país onde por muitos anos não houve dado reconhecimento para a arte e seu fazer cultural. Onde a arte ou que é reconhecido como arte sempre fpi concebido como um espaço para poucos, na maioria as elites que estão sempre prontas a nos dizer o que pode ou não ser arte. Mas ao.longo do tempo através de tantos movimentos artisticos e com evolução de alguns movimentos sociais chegamos a conclusão de como diriam os Titãs na música comida”A gente não quer só comida…”, e foram construidas algumas políticas públicas direcionadas a garatir a arte e a produção artística como um direito cidadão.
    Nos ultimos anos estamos vendo o retrocesso de muitas destas políticas, através da concepção arcaica de um governo que despreza a democracia e tudo que ela pressupõe.
    Onde estaremos daqui há algum tempo quando o obscurantismo nos dominar?
    A arte é vital para nossa formação. E como diante de uma pandêmia devastadora como a que enfrentamos um governo simplesmente ignora os produtores de arte. Tornando clara sua pretensão de nos relegar a “sua ignorância “. Penso principalmente em nossa juventude tão esquecida e vilipendiada a cada dia, quem contribuirá com sua formação?
    Como diria Oswaldo Montenegro em metade” que a arte nos aponte um caminho, mesmo que ela mesma não saiba!”, faço minhas suas palavras nesta letra porque acredito que arte é vital para a formação humana, um ser humano sem acesso a arte é como.um.corpo sem alma.

  3. Avatar Ana Lúcia Hashimoto Serafim disse:

    Eu tenho 40 anos de idade e ao longo dessa Pandemia, em conversa com meus amigos, discutimos que essa crise tirou da sociedade o pior e o melhor dela, por ser uma situação de extremos. Nos fez enxergarmos a vida e a sociedade de uma perspectiva diferente, talvez nossa condição mais humana do que nunca, livre de egocentrismos e uma percepção de si inflada indevidamente, que hoje, não agrega em absolutamente nada.

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