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Desvios decoloniais no cinema brasileiro contemporâneo – Entrevista com Fayga Moreira

O ODC conversou com a pesquisadora Fayga Moreira sobre seu livro recentemente lançado: “Desvios decoloniais no cinema brasileiro contemporâneo” (Editora Devires).

A obra apresenta uma análise crítica do projeto da modernidade, explorando sua interação com a colonização e o cinema brasileiro. Os leitores são instigados a refletir sobre o eurocentrismo e a colonialidade do olhar, utilizando referências do cinema contemporâneo como ponto de partida.

Na entrevista, a pesquisadora, além de falar sobre colonialidade e decolonialidade, aborda questões referentes ao mercado cinematográfico brasileiro.

ODC – Colonialidade e decolonialidade são termos muito utilizados na atualidade, especialmente nos movimentos sociais, grupos artísticos e grupos acadêmicos que atuam em perspectiva de pautas identitárias, revisões historiográficas e busca de novas práxis. Qual é a importância e como tornar essa perspectiva crítica mais popular e acessível na atualidade?

Penso que esses conceitos já são populares, no sentido de que foram forjados no tensionamento entre as teorias e práticas acadêmicas e políticas, de um lado, e os conhecimentos dos povos originários andinos, por outro. E aqui eu estou pensando, especificamente, na conformação desse campo teórico a partir do Grupo Modernidade/Colonialidade, que começa a tomar corpo no final dos anos 1990, a partir do encontro de pesquisadores latino-americanos inconformados com as leituras limitadas que se fazia da região, do processo de colonização e da modernidade como um acontecimento eminentemente europeu e, especialmente, buscavam problematizar as noções de progresso e desenvolvimento ocidentais.

Nesse sentido, acho que a origem está no que entendemos genericamente por popular, tanto é que, quando você observa os movimentos sociais e a resistência indígena ou quilombola, por exemplo, você enxerga ali claramente os pressupostos da decolonialidade. Mas, de fato, precisamos institucionalizar a práxis decolonial, ou seja fazer com que ela vá ocupando as instituições (escolas, universidades, instâncias políticas e governamentais, meios de comunicação, redes sociais), porque é justamente nessas dimensões que as categorias de pensamento hegemônicas se colocam como única forma possível de ser/estar/pensar/agir/compor com e no mundo.

Acompanho Catherine Walsh em sua reflexão de que isso só é possível através das fissuras, brechas, rachaduras das instituições. Até porque o projeto decolonial não é totalizante, ele é dialógico; não busca construir mais muros ou fronteiras e, sim, pontes. Como propõe belamente Antônio Bispo, é uma espécie de reflorestamento do imaginário, diante da monocultura do pensamento eurocêntrico.


ODC – Considerando o modelo político e econômico do mercado do audiovisual, e especialmente o mercado cinematográfico, qual é a possibilidade de perspectivas decoloniais irem além de festivais e produções independentes?

As possibilidades são muito restritas, mas acontecem desvios. Porque a colonialidade do ver, como conceitua Joaquin Barriendos, é a norma que perpassa desde a publicidade até o cinema, passando pelas novelas, vídeos em redes sociais e programas de televisão. Basta dar uma olhada nas fotografias e pinturas dos livros didáticos de história que fica evidente essa construção colonizada da imagem dos povos originários e afrodescendentes, por exemplo. Então, essa matriz vem de muito longe e acaba respaldando o padrão de poder que mundialmente se estabelece, na política, na economia, mas também na institucionalidade da cultura.

 

Isso tem tudo a ver com essa limitação no campo audiovisual. Se a política pública de investimento no cinema tem como parâmetro principal o retorno financeiro por meio da bilheteria, é mais viável que determinado tipo de obra (narrativa, estética) acabe sendo priorizada. A Ancine, agência reguladora do audiovisual, é criada com essa intenção: a de garantir auto-sustentabilidade para o mercado do audiovisual. Mas como alcançar essa meta diante de uma concentração brutal do setor nas mãos de poucas empresas? Esse cenário passou por uma reorganização com as plataformas de streaming (Netflix, GloboPlay, Amazon etc), mas a concentração simbólica (de narrativas, estética) e de capital seguem firmes e fortes. Saímos de uma monocultura de soja, digamos, e estamos permitindo que um pouco de milho, trigo e arroz sejam plantados também.

Mas essa pluralização só ocorre mesmo quando a possibilidade de produção audiovisual se descentraliza. É completamente diferente falar por e falar com, falar a partir e falar desde. Entende a diferença? Ela é enorme. Por isso, acho muito feliz quando o Gabriel Martins, da Filmes de Plástico, essa produtora de Contagem que provocou uma linha de fuga tão potente no cinema brasileiro, diz assim em relação à forma que as obras dele representam as periferias: “a gente escuta melhor”.

O debate é complexo porque envolve uma série de variáveis (leis, prioridades políticas, organização coletiva do campo da cultura, nossa história como país colonizado, as pressões geopolíticas e, no caso do cinema, acesso à tecnologia etc). As políticas públicas acabam conseguindo produzir apenas pequenos, breves e muito limitados contrapontos à essa realidade de concentração e de colonialidades que nos atravessam. Por isso, os desvios decoloniais no cinema, por mais que sejam produzidos, acabam alcançando um público muito restrito mesmo, basicamente aquele nicho que faz questão de assistir a filmes independentes em festivais, em curtas temporadas nas salas de cinema comerciais ou até nas plataformas de streaming (quando chegam lá). E isso já é muito, como eu disse, porque, no meu ponto de vista, a intenção não é produzir novas monoculturas no imaginário coletivo. A disputa simbólica ela precisa existir, mas sem que a tática seja de eliminação do outro ou de ocupar o espaço de poder do outro, necessariamente.

ODC – A distribuição e exibição de produtos audiovisuais não são um problema estrutural para a expansão de uma perspectiva decolonial?

Sim, sem dúvidas. Pelas motivações que pontuei acima, por isso volto à reflexão da Catherine Walsh: é preciso atuar nas frestas. E isso significa, acho, o que já acontece, se a gente entende tais brechas como sendo os festivais, canais e demais espaços de exibição independentes ou mesmo a ocupação de espaços altamente permeados pela lógica da colonialidade por artistas com propostas decoloniais.

Exemplos? O trabalho que Daiara Tukano vem realizando. A própria Filmes de Plástico, que já mencionei, de Contagem para o mundo. O Takumã Kuikuro, o Antônio Bispo, dentre tantos outros que provocam pequenos, mas contundentes, abalos sísmicos no bom senso dominante: esse que acredita que ser civilizado é sinônimo de letrado, bem sucedido financeiramente, com bons modos à mesa.

Complementando, inclusive, a resposta à pergunta anterior, creio que precisamos mesmo entender os espaços de exibição de forma mais alargada, se a intenção for enfrentar a colonialidade do ver e essa monocultura do imaginário. Se o seu público não está necessariamente nos cinemas, seu filme precisa ir onde ele está. Aqui Milton Nascimento tem muito a nos ensinar, né? As escolas, por exemplo, são ativos culturais preciosos, espaços estratégicos para operar essa disputa simbólica. Mas esta compreensão precisa estar contemplada nas políticas culturais. Só assim para a distribuição e exibição deixarem de ser um grande obstáculo entre a produção audiovisual e seus possíveis públicos.

Se insistirmos na ideia de que um filme, para ser exitoso, precisa lotar as salas de cinema, compor os catálogos de streamings estrangeiros e ganhar prêmios em festivais renomados, estamos limitando muito a circulação de importantes narrativas, estéticas, práxis decoloniais que encontram no audiovisual sua forma de expressão.

Existem outros exemplos inspiradores aqui mesmo na América Latina, como plataformas menos comerciais e que agregam obras mais dissidentes, plurais, menos conformadas ao padrão de colonialidade do audiovisual. Mas, do mesmo modo, pouco acessível para a maior parte da população.

ODC – Qual a importância do Programa DOC TV, que impacto trouxe e como retomá-lo para a perspectiva de uma decolonialidade do audiovisual?

O DocTV foi uma das políticas públicas mais felizes do MinC nas gestões de Lula e Dilma. O impacto foi esse do ponto de vista decolonial: muita gente

produzindo muitos olhares plurais, dissidentes, potentes. Sem contar a inovação que trazia para o campo do audiovisual, afinal enfrentou esse gargalo da distribuição e exibição, ao garantir espaço nas grades das televisões públicas para esses filmes.

Mas as limitações também foram muitas e precisariam ser encaradas de frente, se fosse o caso de retomar essa política pública. Primeiro que os horários de exibição eram muito ingratos, tornando difícil o acesso aos documentários. Depois que o contrato de cessão de direito, como foi estruturado, dificulta muito a negociação com outras janelas de exibição. Por fim, nem nas escolas os filmes foram distribuídos. Ou seja, o alcance foi muito aquém do possível e esperado. Quando procuro algum dos documentários para exibir em minhas aulas, a dificuldade é tão grande que desisto.

E é uma tristeza porque, de fato, muitos desses filmes são importantíssimos para enriquecer e complexificar o debate público. Foi muito interessante que, durante a pesquisa de doutorado, eu vi mais de 30 filmes produzidos nas edições do DocTV e muitos desses documentários traziam, por meio da linguagem cinematográfica, provocações e reflexões muito próximas daquilo que eu andava lendo sobre decolonialidade. Ao meu ver, isso só reforça que o campo de estudos decoloniais se organiza a partir da sabedoria altamente sofisticada desses povos, pessoas e grupos, que foram invisibilizados, inferiorizados, subalternizados durante a colonização e seguem sendo ainda hoje.

Um exemplo bom é o documentário “Filhos do Jaú”, que retrata o conhecimento profundo e altamente estruturado e sistematizado da população do Parque Nacional do Jaú em contraste com o saber acadêmico dos pesquisadores que chegam para realizar seus trabalhos por lá. Fica muito evidente como a complementaridade é o caminho, porque a sabedoria desses povos é inalcançável para quem não participa efetivamente daquela cultura, e tem condições de participar de forma horizontal com a ciência na busca por soluções para a humanidade. Aqui, a Ecologia dos Saberes, defendida por Boaventura de Souza Santos, fica muito explicitada como chave para um projeto decolonial.

ODC – O primeiro ano do novo governo Lula está terminando, você identifica ações efetivas para o fortalecimento do olhar e da produção decolonial no audiovisual brasileiro? Quais?

Antes de falar sobre o audiovisual especificamente, queria pontuar que essa é a gestão do Lula com mais desvios decoloniais, por incrível que pareça. Pela primeira vez, uma mulher indígena está à frente da Funai. Tem a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandada por Sonia Guajajara, e tivemos aquela cena simbólica do presidente recebendo a faixa presidencial pelas mãos de pessoas que não costumam estar representadas nesses espaços de poder.

Claro que uma avalanche de críticas está acompanhando o governo ao longo desse primeiro ano, no intuito de que esse gesto simbólico da posse se desdobre em ações efetivas para garantir que os povos indígenas, a população negra, as pessoas com condições especiais, as minorias todas, tenham equidade na gestão, no poder decisório mesmo. Mas não podemos deixar de reconhecer que esse é um governo de transição democrática que já promoveu tantos avanços diante de um país escancaradamente conservador e um Congresso altamente atravessado pelas colonialidades todas. Essas contradições fazem parte do jogo democrático, lamentavelmente.

Dito isso, no campo do audiovisual, o que temos é uma retomada lenta. O setor cultural saiu nocauteado do lamentável governo anterior, então é previsível que a institucionalidade, os recursos e as políticas públicas se efetivem de forma mais lenta. Já tivemos um edital bem interessante de produção de curtas independentes com foco em cineastas mulheres, negras e indígenas. Foi um pequeno passo. Com os aportes das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo fica mais difícil avaliar de antemão, já que a execução dos recursos é realizada pelos estados e municípios com alguma autonomia, o que pode significar uma grande descentralização regional, mas não necessariamente esses editais vão contemplar ou priorizar diretores com propostas decoloniais.

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