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Entrevista – Isabel de Oliveira e Silva

Ações afirmativas: por que o sistema de cotas deve chegar à pós-graduação

  1. A importância das ações afirmativas na pós-graduação

A Portaria do MEC que induz as ações afirmativas na pós-graduação teve a importante função de provocar a discussão das desigualdades que se expressam nesse nível de ensino, bem como na produção do conhecimento científico. Enquanto na graduação as universidades já haviam implementado diferentes formas de contemplar as ações afirmativas, a pós-graduação permanecia alheia a essa discussão. No Brasil, a pesquisa científica tem na pós-graduação seu lugar privilegiado.

O mérito acadêmico figura de forma absoluta não sendo problematizado em termos das condições que levam os sujeitos a se habilitarem para os processos seletivos tais quais estão organizados. Assim, os estudantes cujas trajetórias escolares ocorreram em condições desfavoráveis, seja pelas possibilidades de dedicação aos estudos, seja pela ausência de qualidade das instituições escolares frequentadas, não encontram, nos processos seletivos, reconhecimento do mérito de terem chegado até ali em condições adversas.

As ações afirmativas na pós-graduação se constituem em possibilidade de democratização da universidade e das condições de produção do conhecimento em nossa sociedade. Considero importante destacar que as ações têm o papel de contribuir para o aprimoramento das instituições de ensino superior e da pós-graduação. A diversidade de estudantes na pós-graduação é, em si, um fator de qualidade. Ao promover maior justiça social, as ações afirmativas podem contribuir também para que os programas enfrentem questões e formas de produção do conhecimento historicamente negligenciadas e que favoreçam seu enriquecimento e contribuição para a mudança social.

Minha experiência direta com a implementação das Ações afirmativas na Pós-graduação foi na Faculdade de Educação da UFMG. Essa universidade, por meio do seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, emitiu uma Resolução, em abril de 2017, determinando que todos os programas de pós-graduação reservassem entre 20% e 50% de suas vagas para candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos) e, por meio de editais suplementares, vagas para candidatos indígenas pessoas com deficiência. O programa de pós-graduação em Educação definiu a reserva de 50% das vagas para negros e tem aberto, desde então, editais suplementares para estudantes indígenas e para pessoas com deficiência em todos os processos seletivos.

  1. O sistema de cotas nas políticas de ação afirmativa

Considero que o sistema de cotas nas políticas de Ações Afirmativas é fundamental para a democratização do acesso de candidatos dos grupos historicamente excluídos dos bens materiais e simbólicos da nossa sociedade. Um aspecto importante a ser considerado é o do acesso às diferentes áreas do conhecimento. Como se sabe, desde a graduação, as áreas com maior prestígio social e profissional são altamente seletivas em termos de classe, raça e outras clivagens sociais. As cotas oferecem a possibilidade de que tais áreas possam ser também acessadas por tais grupos sendo, por eles, também transformadas em termos das prioridades na produção de conhecimentos.

Penso que ainda estamos distantes de ter uma avaliação dessa política, considerando que é muito recente. No caso da UFMG, por exemplo, a Resolução específica, que é de 2017, determina que será feita avaliação após seis anos de sua implementação.  Posso citar como um resultado, no caso do PPG FaE/UFMG, a indução à incorporação de temáticas antes pouco presentes em algumas linhas de pesquisa, como é o caso das relações étnico-raciais e a educação inclusiva. Assim, aliado à maior presença dos estudantes negros, indígenas e de pessoas com deficiência (ainda em número muito reduzido), observa-se o enriquecimento na produção dos conhecimentos no campo da educação.

  1. Principais desafios

Considero como um importante desafio a discussão pública sobre o mérito acadêmico, inserindo-o nos debates sobre as desigualdades sociais. Além disso, será importante que a universidade discuta as formas como a pós-graduação pode se beneficiar de experiências e trajetórias de estudantes que, além de superarem diferentes obstáculos na trajetória escolar, podem aportar novos temas e problemas científicos nas diferentes áreas do conhecimento, de modo a que a universidade possa efetivamente responder a questões que envolvem as populações negras, indígenas, pessoas com deficiência e demais grupos que sofrem os efeitos das desigualdades sociais.

Do ponto de vista da operacionalização das ações afirmativas, há o desafio da própria chegada dos grupos aos quais se destinam à condição de concorrência à pós-graduação. Considerando que a seletividade ocorre desde os níveis iniciais da educação escolar, esses grupos ainda são sub representados nos processos seletivos. No Programa de pós-graduação em Educação da UFMG, por exemplo, embora os editais destinem 50% das vagas para candidatos negros, esse percentual não vem sendo preenchido porque não temos número de candidatos suficientes. É necessário compreender melhor as causas da baixa concorrência às vagas reservadas, refletindo-se sobre as ações afirmativas na graduação e sua capacidade de preparar tais estudantes para a pós-graduação.

Outro desafio consiste nas condições ofertadas pelos programas para que os estudantes que ingressam tenham condições de realizar o curso. A política de concessão de bolsas precisa levar em conta as ações afirmativas, reservando cotas específicas para esse grupo, além da discussão sobre os valores dessa remuneração, tendo em vista as condições de vida desses sujeitos.

As ações afirmativas podem contribuir para o aprimoramento dos programas por meio da incorporação de novos temas e problemas de pesquisa. Para isto, faz-se necessário um processo de revisão dos percursos formativos existentes. E, aliado a isto, a compreensão das necessidades de formação trazidas pelos diferentes grupos que integram a pós-graduação. Um desafio importante se refere ao domínio de língua estrangeira, por exemplo. As universidades precisam se organizar para ofertar as possibilidades de acesso a este e outros conhecimentos e habilidades necessárias à inserção plena na vida acadêmica.

Tags: Diversidade Cultural, Racismo, Cotas Raciais, Cotas Para Negros, Desigualdade Social, Ações Afirmativas, Políticas Públicas

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1 Comentário para “Entrevista – Isabel de Oliveira e Silva”

  1. Avatar Terezinha disse:

    As duas entrevistas lançam questões importantes. Outra questão a ser abordada é assistência estudantil, cada dia mais restrita, essencial para a permanência do aluno pobre que consegue vencer a barreira do vestibular. Já tive aluno, na Universidade pública, que era servente de pedreiro. Era coordenadora de colegiado, e só descobri isso quando ele estava no 4o. Período, e a ponto de abandonar o curso. Também vi casos de alunos deixarem de ir às aulas por falta de dinheiro para condução ou comida. Como a Universidade pública está mapeando essas necessidades, e até que ponto está buscando atendê-las?

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