Destaque

Extraordinária vida comum

Foto: Bruno Timóteo

Foto: Bruno Timóteo

A jornalista Eliane Brum percorre a cidade. Quando percebe aglomerações em torno de algum acontecimento, aproxima-se das pessoas, chama pra si o papel de contar das dores e alegrias que motivam suas reportagens. Muitas vezes é na solidão dos espaços que encontra recolhidas histórias de vida a falar sozinhas.

Reconhecer a notícia em experiências de vida esquecidas pela maioria das pessoas parte da observação demorada. Os relatos da jornalista tratam das razões de cada um e mostram os descaminhos que identificam entrevistados e leitores, na condição de protagonistas.

Narrativa jornalística que vem do exercício comprometido e apaixonado de compreender a realidade, sempre em parte; ancorado no tempo do olhar, para escutar falas e silêncios. A razão principal de estar junto é a presença única daquele com quem encontra, cuja fala ocupará a reportagem movida por interesse, sem concessões, pela diversidade da experiência humana.

Olhar e escuta
Em uma época marcada pela aceleração da cobertura jornalística, Eliane falou sobre a prática profissional, no último dia 24 de fevereiro, durante aula inaugural do curso de Comunicação Social da PUC Minas. Provocou uma pausa para o exercício da percepção, interpretação e possíveis escolhas -como convidou os estudantes- em direção ao mergulho na pauta, o que implica assumir riscos, explorar caminhos desconhecidos, envolver-se nos mistérios da entrevista, sem perder de vista, jamais, o compromisso com a precisão na apuração da informação.

“A extraordinária vida comum: o olhar e a escuta na reportagem”, tema da palestra, enfatizou a grandeza das fontes. Pessoas nunca são comuns, ao contrário, na vida ordinária mora a singularidade das histórias, defende a escritora. Entrevistar é olhar para o outro e voltar a si mesmo; revela diversidades ao recuperar a experiência do encontro.

“Ser jornalista é resistir a qualquer naturalização, precisamos resistir aos oficialismos”, disse sobre a importância da palavra no exercício da profissão. Lembrou, nesse ponto, a cobertura jornalística sobre a atual situação hídrica no país: quem sofre as consequências da escassez no dia a dia sabe do modo como seu cotidiano é afetado, inevitavelmente, identificando uma “crise”. Porém, ao evitar a visibilidade dessa palavra, a mídia sustenta o adiamento do rodízio do uso da água como medida necessária, afirmando sua lógica como aceitável; alimenta o oficialismo da notícia, legitimando o discurso das fontes institucionais.

“Estranhar, duvidar, olhar para os cantos escuros… duvidar como exercício cotidiano”. Ela não dá receita, mas destaca a postura de disponibilidade para o outro, de mudar o rumo frente à narrativa padronizada, ao encontro do fato de interesse humano e social, o que chama de “desacontecimentos”. “Resistir à domesticação dos nossos olhos” torna-se, assim, requisito para a criação de narrativas que confrontam os clichês midiáticos.

Desacontecimentos
Além da escolha da pauta, o enfoque da matéria é aspecto decisivo. Foi assim quando entrevistou Jorge Luís que deixou a roça em busca de reconhecimento social e, apesar de todos os esforços, permanece ignorado. “O homem que engole vidro, mesmo assim, continua invisível”.

Ao vê-lo, não se interessa pela dimensão do exótico ou sensacional; descarta o espetacular que exacerba diferenças, causando distâncias. Busca as fronteiras que misturam as formas de vida, resistindo, nas entrelinhas, parecendo dizer, nas palavras da jornalista sobre o homem de vidro que se mostra aos olhos de quem passa: “Nesse mundo, nessa época, parece que comer vidro não basta”.

Eva, por sua vez, não aceita o olhar que a vitimiza por causa de sua condição física, resultante de uma doença na infância que afetou os movimentos. Sua expressão é incômoda ao desejar e exigir, com atitude firme, o reconhecimento de tudo o que é: “Ao impedir que a olhem com pena, o olhar dela expõe a deformidade invisível do outro”.

Foto: Bruno Timóteo

Foto: Bruno Timóteo

É preciso também classificar, enquadrar, afastar Wanderlei (imagem projetada, na foto) para fora da lógica que explica as coisas e as pessoas ditas normais. Ao homem que insiste em cavalgar, em seu cabo de vassoura no tradicional evento Expointer, em Porto Alegre, onde “é possível rir dele”, a jornalista perguntou: Wanderlei, você é louco?

“Acha que não sei? – disse Wanderlei, ao afirmar: “sem invenção a vida fica muito sem graça, fica tudo muito difícil”. Ele que não tem como comprar um cavalo, mas quer cavalgar; com seu cavalo de pau junto ao corpo, sabe da invenção de sua presença rotulada de loucura e “inverte o seu significado no mundo”, observa Eliane.

Porquês
Como a vida, pautas são incontroláveis, estão na rua e não se submetem à burocracia da redação. “Só faz sentido se, ao final, somos fieis a nós mesmos, se estamos à altura dos nossos sonhos”. Um pacto com as verdades do entrevistado requer que o jornalista também “lute para se lembrar de seus porquês”.

Em sua primeira grande reportagem no jornal Zero Hora, aos 26 anos, acompanhou as outras versões sobre a Coluna Prestes, em busca dos porquês de pessoas pobres – testemunhas de seu tempo – que confrontavam o enquadramento oficial do fato. Enfrentou o medo inicial de fazer a reportagem e mostrou que a Coluna Prestes é um mito porque a maioria viveu pior depois de sua passagem. “Coluna Prestes – o avesso da lenda” colheu muitas críticas e recebeu a menção honrosa Wladimir Herzog. Em 1989, a Fundação Getúlio Vargas abriu os arquivos dos comandantes da Coluna, confirmando a versão da reportagem sobre o fato histórico.

Certa vez, não teve dúvida: abandonou o roteiro da redação do jornal Zero Hora, ao olhar para os “meninos do esgoto de Porto Alegre” que saíam do abrigo noturno. “Nenhuma reportagem pode ser mais importante do que uma pessoa”, continua a acreditar.

Esteve com Ailce, ao longo de sua luta contra o câncer, nos últimos 115 dias de vida da mulher com quem criou laços eternos. Juntas durante um dia de todas as semanas, sem, no entanto, Ailce pronunciar a palavra que a mataria.

Num ritual que prepara a reportagem, consulta a si mesma ao sair de casa: “se a repórter chegasse, eu abriria a porta?” – “se me fizesse uma pergunta, eu responderia?”. Afirmativas, as respostas autorizam a conhecer, mas não permitem julgar; checar informações para apuração de verdades múltiplas até “alcançar o mundo dos outros, para além de nós mesmos”, ou “o momento de se despir de tudo que se é, crenças, visões, julgamentos”.

“Me conta”, propõe.

Raquel Utsch

Deixe aqui o seu comentario

Todos os campos devem ser preenchidos. Seu e-mail não será publicado.

ACONTECE

ODC Diálogos – 17 de Abril de 2024

No dia 17 de abril (quarta-feira), às 19 horas, acontecerá mais uma edição do ODC Diálogos. Motivado pelo número 100 do Boletim, o encontro tem como tema “Avanços e desafios para a política cultural no Brasil hoje”, e contará com a participação de Albino Rubim e Bernardo Mata Machado, sob mediação da pesquisadora do ODC, […]

CURSOS E OFICINAS

Oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural – Santa Luzia (MG)

O Observatório da Diversidade Cultural, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais, e com o patrocínio da Soluções Usiminas, e apoio do SESC Santa Luzia, realiza a oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural. A oficina Mapeamento Participativo da Diversidade Cultural tem como objetivo a formação de agentes culturais, estudantes, pesquisadores […]

Mais cursos