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Os mapas e a construção de diferenças na cidade. Institucionalização de um discurso segregador?

“Os mapas mais decentes são coleções de pequenas mentiras” – Mark Monmonier

Artigo traduzido pela equipe ODC:

Ao longo da história o ser humano se valeu da elaboração de mapas para representar diferentes dimensões do contexto socioespacial que o circunda, tendo em foco temas específicos e com objetivos definidos. A construção de um mapa realiza-se com o fim de fornecer informação e examinar situações através de localização e distribuição espacial de determinados dados com um interesse particular. Isto nos fala de uma construção social, portanto de uma interpretação subjetiva e intencionada.

A partir do momento em que cidades começam a se converter em objeto de estudo para numerosas disciplinas científicas, são incorporadas análises espaciais tanto de fenômenos naturais como das características atividades e relações sociais observadas no território. É assim que os mapas se tornam poderosas ferramentas para conjugar uma quantidade e diversidade notável de informações em forma de imagens. Neste sentido, é interessante observar como o fato de espacializar dados de uma realidade contigente mediante ferramentas estatísticas pode apresentar conflitos em relação ao tipo de dados utilizados, à forma de representá-los à realidade que busca ser mostrada e aos resultados obtidos.

Mediante a criação e utilização de mapas, a ciência se dedicou a construir cenários e legitimar discursos baseados nestas análises espaciais que se instituem como representantes da realidade e se auto-pronunciam como imparciais, precisos e objetivos. Entretanto, como na formação de toda descrição, o mesmo fato de fazer um mapa implica delimitar, limitar, definir e categorizar o que muitas vezes se traduz como uma tendência a estigmatizar, segregar e restringir. Ao ser descrito, o mapa se converte assim em instrumento que legitima e dá bases para um que cenário seja reproduzido e aceitado como realidade.

A partir destas reflexões surgem algumas questões interessantes a serem levantadas ao analisar situações sociais mediante mapas: Quão precisos e neutros são os mapas? Eles constituem uma realidade objetiva, possível de ser verificada no território? Em que medida os mapas e os relatos derivados dos mesmos contribuem para impor e legitimar discursos e processos, tanto como a definir e estigmatizar lugares e atores? De que maneira um mapa constrói por conta própria um cenário determinado e intencionado? Que papel possui a descrição, como relato, destas representações? Que ressalvas devemos ter ao interpretar mapas? Consideramos que estes pontos são importantes de examinar na hora de incorporar representações territoriais ao estudo de processos e fenômenos urbanos, tendo em conta a estreita relação entre as dimensões físicas e sociais que implicam.

O problema de representar o social

Como mencionamos, entendemos que o mapa é uma construção social, portanto supõe uma inclinação marcada pela subjetividade. Neste sentido, vários autores consideram que os mapas são somente uma maneira, entre muitas outras, de apresentar a informação. Trata-se de uma convenção social composta por diferentes códigos que adquirem significado somente em relação com outros códigos; produzido e definido sob um contexto determinado. Em última instância, um mapa terá as características que seu criador quiser imprimir e a informação do mesmo estará dirigida intencionalmente.

Fazer um mapa implica sintetizar e confinar situações complexas e em constante movimento em uma espécie de estampa inerte e estática. Pelo contrário, um mapa deve ser dinâmico e flexível para poder envolver a complexidade social com sua multiplicidade, heterogeneidade, interconexão e mobilidade; somadas às constantes modificações a nível micro que ocorrem na sociedade.

A dificuldade de poder representar a realidade em um plano bidimensional não só remete a questões sociais, mas também à representação geográfica desde suas origens, que implicou formas e mudanças difíceis de serem expressadas sem deformar esta realidade. No caso de interpretações sociais, o problema está em buscar fragmentar e limitar situações entendendo esta realidade como um produto final, esquecendo-se que a sociedade se reproduz mediante diversos processos de movimento constante.

Fonte: http://www.slideshare.net/Ignacio/la-representacion-del-mundo

A construção de um mapa estará ligada a uma certa deformação da realidade, geralmente intencional e com fins determinados. A imagem acima mostra a projeção de Mercator e como a mesma amplia regiões setentrionais, alterando a realidade.

Em geral, os modelos tradicionais de diagnóstico e análises urbanos baseados em mapas costumam se destacar por determinar áreas homogêneas e caracterizá-las como “boas” ou “ruins” segundo diferentes critérios e variáveis. Este método, contudo, pode ser contrastado (ou complementado) por análises menos definitivas e absolutas.

A partir de uma abordagem menos restritiva, podemos considerar o mapa como uma interpretação do território atravessado por distintas dimensões de análises e que portanto serve para ser recorrido de diversas maneiras. A riqueza de um mapa estará dada, então, enquanto permita que qualquer ponto dentro do mapa possa ser vinculado com qualquer outro ponto. Uma análise deste tipo, aplicada ao território, nos permite extrair de algumas maneira as dificuldades que se encontraram ao tentar definir, enviesar e confinar aspectos sociais.

A questão aqui seria buscar a forma de construir mapas na qual a possibilidade da mudança, movimento e contato não só esteja aceitada, mas também que seja parte inerente, ativa e determinante da ferramenta de interpretação, sem esquecer que em algumas instâncias a precisão cartográfica pode se tornar secundária frente às considerações ideológicas subjetivas.

Contudo, a subjetividade por si mesma não implica em problema para a elaboração e leitura de um mapa, sempre e quando seja considerada conscientemente como parte constitutiva do mesmo. Pelo contrário, pode acontecer que em alguns casos a utilidade dos mapas venha de seu viés e subjetividade. O importante então é que os mapas sejam explícitos em relação à escolha de seus dados e à maneira que serão representados.

Neste sentido, as distorções, os erros e omissões que poderiam existir deveriam ser declarados para que os destinatários estejam atentos ao que podem ou não receber deles. Assumindo que a subjetividade é intrínseca à construção de um mapa e uma vez tendo advertido isto, o leitor consciente estará apto a usar os mapas como uma entre outras tantas ferramentas disponíveis para analisar a realidade.

Os mapas como instrumentos de legitimação discursiva e segregação socioterritorial

Em geral, os mapas elaborados nos âmbitos acadêmico e científico são considerados neutros e fieis à realidade. Contudo, como notamos, não são outra coisa que não visões enviesadas e às vezes totalizadoras. Assim, o uso opcional destas representações possui um risco: a percepção da realidade já se encontra assimilada, tem sido passada por um crivo subjetivo, atravessada por uma ideologia e orientada a certos objetivos.

Viver em diferentes lugares da cidade será então viver em categorias que definem os mapas, em uma representação relativa, atravessada por uma forte carga simbólica que atiro o indivíduo até as bordas de um mundo construído intencionalmente para ele e que cuja construção ele também faz parte. Esta construção apresenta-se com um marcado critério de desvalorização e exclusão, legitimado por discursos institucionalizados e plasmados na representação cartográfica que se encarregará oportunadamente de ressaltar estas diferenças, espacializá-las, caracterizá-las, defini-las e catalogar-las de acordo com ideologias, alores e categorias precisas.

Com seus “mapas sociais”, o arquiteto argentino Horacio Torres foi precursor do mapeamento de dados estatísticos, delimitando regiões em diferentes áreas de Região Metropolitana de Buenos Aires e caracterizando sua periferia. Apesar de seu rigor quantitativo e sua utilidade relativa, isto implica na construção de diversos significados e limites simbólicos, assim como na legitimação de um discursos que segrega grupos e espaços.

Fonte: TORRES, Horacio (1978), “El Mapa Social de Buenos Aires en 1943, 1947 y 1960. Buenos Aires y los modelos urbanos”. En: Desarrollo Económico 8(70), Buenos Aires: IDES

Observamos nestas construções a emergência de um simbolismo atribuído às diferentes áreas da cidade que aparecem definidas em grande medida pelos setores sociais que habitam nas mesmas e que constroem o território na medida de suas necessidades, possibilidades e perspectivas. Por sua vez, o território, entendido como recurso e como produto, com diferentes qualidades geográficas (físicas) e sociais (simbólicas), distribui-se entre os diferentes grupos sociais de acordo fundamentalmente à capacidade econômica de acesso ao mesmo.

A representação simbólica do espaço

Com este tipo de análise, nota-se como o lugar de residência é capaz de definir posições e status, conferindo um tipo de prestígio, honra e classe social particular a seus habitantes. Neste sentido, o fato de viver em regiões consideradas “boas” não é considerado um reflexo de uma boa posição socioeconômica, mas sim que o lugar por si só se transforma em um fato outorgador de status e prestígio.

A partir disto desprende-se uma questão interessante para reflexão: em que momento e forma “o geográfico” combina-se com “o simbólico”, estabelecendo diferenças entre lugares e pessoas? Certamente as possibilidades de instituir relações de comparação entre diferentes áreas são tão numerosas quanto os mesmos territórios. Em contrapartida, os conteúdos simbólicos das comparações pareciam ser limitados, dado que as unidades de estudo podem mudar enquanto as representações simbólicas a associadas às mesmas tendem a se manter.

A ideia que fundamenta este argumento é que existe uma grande diversidade de variáveis usadas para descrever, caracterizar e até produzir diferenças; a criação de fronteiras urbanas, em termos simbólicos, pode se reduzir a termos dicotômicos de pobreza e riqueza, que representam em última instância ao bem e ao mal.

Mais importante que destacar o conteúdo valorativo dos mapas simbólicos é analisar como eles conformam estrutura de comparação e de que maneira são definidos. Neste sentido, se viver em um determinado lugar é um dado relevante para definir o perfil social de uma pessoa ou grupo, esta caracterização não é um dado objetivo, mas sim uma visão enviesada que não necessariamente será compartilhada por outros observadores e, ainda mais, possivelmente seja muito diferente da auto-avaliação do próprio ator social.

Fonte: Fleckenstein, Leah (1991). How maps lie. Syracuse University Magazine (8)1, 36-39

O modo de representar a informação estatística e social varia de acordo com a subjetividade e finalidade que o autor queira imprimir ao mapa. Os resultados obtidos podem ser enganosos: no mapa da esquerda estão demarcados com círculos o número absoluto de mortes infantis, o que parece indicar uma grave situação na região nordeste. Entretanto, ao tomar o dado de mortes relacionados à população total, verifica-se que tal situação na verdade estaria ocorrendo na região sudoeste do território representado.

Da mesma forma, o trânsito pelos diferentes territórios da cidade implica também um percurso por diferentes campos simbólicos. É então que adquirem importância os mapas simbólicos urbanos nas relações sociais, nas vias e na vida cotidiana, devido ao papel que executa na rotulação e classificação que fazem referência direta ou indireta a locais de residência e procedência das pessoas.

Ao contrário do que um mapa possa definir, limitar e catalogar, entende-se a sociedade como algo ativo e em mudança, fonte de dinâmicas nas quais os atores acionam códigos e manipulam suas identidades de acordo com o contexto social em que se encontram. É precisamente nas interações sociais que a sociedade se constrói, se produz e se atualiza. E um mapa que queira ser preciso deverá contemplar esta possibilidade de mudança. Neste sentido, os mapas aplicados a estudos urbanos deveriam procurar com mais empenho representar estas características intrínsecas da sociedade, mais do que vangloriar-se de sua fidelidade na tarefa de definir áreas, limitar espaços, estabelecer fronteiras e catalogar grupos.

Jorge Omar Amado é pós-graduado em Urbanismo e graduado em Ciências Sociais pela Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS), Buenos Aires, Argentina. Sua formação complementa-se com estudo de pós-graduação relacionados a gestão do solo, desenvolvimento sustentável e planejamento urbano, habitat social e meio-ambiente em instituições públicas e privadas. Foi bolsista na UNGS e participou de numerosas equipes de pesquisa na mesma universidade e em municípios da Província de Buenos Aires; além de realizar docência universitária em diversos cursos da capacitação. Também colaborou na publicação de artigos e textos em revistas especializadas e jornais locais. Atualmente é Coordenador de Habitat Social no município de San Miguel, Buenos Aires e membro de diversas equipes de pesquisa e consultorias nacionais e internacionais.

FONTE: Plataforma Urbana (tradução nossa)

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1 Comentário para “Os mapas e a construção de diferenças na cidade. Institucionalização de um discurso segregador?”

  1. Avatar Hélio Shiino disse:

    O que este Post ilustra é tão interessante quanto contundente se olharmos sob o viés socio-político e não apenas como um simples desenho em 2 dimensões.

    As linhas separatórias imaginárias, sejam inter-bairros, sejam inter-nações, foram e sempre serão traçadas posteriores às acomodações dos assentamentos e atores que buscam se agrupar confrme as suas similaridades e interesses próprios.

    No passado recente, durante as 2 Grandes Guerras, nos mostrou uma faceta colonizadora e imperialista. Podemos colocar como exemplo desta, a “Nova Ordem” que o Nazismo impôs sob a ótica racista.

    A alteração geo-política que se dá pela expansão territorial desde as primeiras civilizações é motivada principalmente pela busca do monopólio dos recursos naturais e fonte de energia para a subsistência de seus povos.

    A nível micro, como os bairros de uma metrópole, o status e o poder econômico de seus habitantes, os obrigam a um êxodo natural onde a adequação a sua Zona se faz de uma forma automática do que denominamos mapa da cidade.

    Há anos que coleciono mapas do Rio de Janeiro, de qualquer época, pela curiosidade em analisar tanto os bairros recém criados quanto os extintos que foram “engolidos” por bairros vizinhos de maior “força de expressão”.

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