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O Fundo Nacional de Cultura, o Estado e a Promoção da Diversidade

Proposta de Emenda Constitucional tramitando no Congresso Nacional propõe extinguir diversos Fundos Públicos no país, mas, o que isso tem a ver com a promoção da diversidade?

Uma pequena introdução sobre os orçamentos públicos

Há tempos que precisava trocar as portas de casa, que estavam muito ruins, mas, não bastava querer. Como a casa não vive só de porta e tem contas obrigatórias, como prestação do apartamento, condomínio, alimentação, educação das filhas, plano de saúde, impostos, precisávamos conciliar as contas.

Olhar para o planejamento orçamentário e ver quanto está previsto para entrar, o que é despesa obrigatória que não tem como escapar, quanto custam todas aquelas coisas novas que precisam ser feitas e, no final das contas, escolher o que iríamos fazer de verdade, o que daríamos conta. Havendo dinheiro, tempo e vontade, tudo poderia ser feito, mas sem dinheiro, sem tempo ou sem vontade, nada sairia das ideias.

A execução dependia de conciliar as receitas que temos com o tempo e recursos humanos suficientes para realizar, bem como uma dose de boa vontade para definir prioridades e fazer com que as coisas realmente aconteçam. Após analisar bem o orçamento de casa, priorizamos a troca da porta de entrada, que consideramos a mais urgente. Meses depois substituímos a pia de cozinha e do banheiro e, por fim, optamos por investir na natação para as filhas.

É mais ou menos assim que funciona o orçamento público. Explicando de uma forma simplificada, o governo estuda e prevê quanto terá de receita (quanto o governo consegue arrecadar) e quanto terá de despesa (quanto deve gastar). A prática orçamentária tradicional lidava somente com a referência de receita e despesa, não dando tanta importância aos aspectos de planejamento de longo prazo, necessidades da coletividade etc. Ao longo dos anos, esta abordagem foi sendo consolidada e aprimorada, chegando a um desenho chamado “programa e função”. Abreu (2014), ao analisar este desenho, aponta que partir dele “o orçamento passa a ser um instrumento de operacionalização das ações do governo, em consonância com os planos e diretrizes formuladas no planejamento” (Abreu, 2014, p.11).

Quando temos acesso ao orçamento, algumas palavras podem soar estranhas, então vamos tentar explicar com poucas palavras: primeiro, o orçamento é construído com base no que chamamos de Unidades Orçamentárias, que seriam como as categorias de despesa que temos em casa (aluguel, transporte, saúde, alimentação, telefonia etc). No orçamento público, cada órgão ou fundo é chamado de Unidade Orçamentária, sendo uma identificação específica para realizar a despesa, também chamado de execução.

O orçamento é elaborado dentro do governo pelos secretários ou ministros e suas equipes técnicas, tornando-se um documento conhecido como peça orçamentária. Em seguida, esse documento é enviado pelo prefeito, governador ou presidente para o legislativo, que discute, propõe alterações e aprova o que chamamos Lei Orçamentária Anual (LOA), autorizando limites para cada Unidade Orçamentária. Note que é uma “autorização”, estando o poder executivo relativamente livre para executar aquilo como entender melhor, dentro daqueles limites.

Há, contudo, algumas despesas que a constituição obriga que sejam feitas em algumas áreas de atuação do Estado, como Saúde, Educação, Assistência Social, além das despesas fixas de pessoal, encargos funcionais e manutenção dos prédios públicos. Extraídas essas despesas chamadas fixas e obrigatórias, há um saldo que é destinado ao que se chama despesa discricionária, ou seja, despesa que é executada de acordo com um grau de decisão do governo.

Do documento do orçamento para a execução há um processo até que a despesa seja realmente paga (ou “executada”), composto por três etapas: empenho (documento através do qual o governo reserva o recurso para quando o serviço for executado ou o bem entregue), liquidação (quando foi executado ou entregue) e pagamento (repasse do governo para quitar a despesa acordada). Há um outro termo que precisa ser explicado: Restos A Pagar (RAP), que nada mais são que itens que não foram pagos até 31 de dezembro e precisam ser pagos no ano seguinte.

Há restos a pagar “processados” (empenho emitido, trabalho entregue e faltando só o pagamento em si) e “não processados” (empenho emitido, mas trabalho ainda por ser concluído e pagamento por ser feito). Desta forma, para avaliar a execução orçamentária de um ano precisamos identificar todas as despesas realizadas no ano e aquelas que precisam ser pagas no ano seguinte.

Em síntese, o que efetivamente reflete a vontade política ou capacidade gerencial é o que foi pago/executado daquilo que foi proposto como orçamento (que podemos chamar de conjunto de intenções). Por isso, acompanhar como se dá a execução do orçamento é importante para entender as políticas públicas para além dos discursos e das intenções e avaliar a sua efetividade concreta.

Orçamentos públicos e políticas para a diversidade

Ao pensar em políticas para promover a diversidade, quase sempre se lembra de tentar garantir itens no orçamento que permitam ao Estado cumprir seu papel. Porém, a existência de um item com recurso no documento do orçamento garante pouco efetivamente, quando se tem tantas urgências e prioridades dos governos. É necessário que se some a isto uma vontade política efetiva para que determinadas ações, políticas e programas saiam do papel, executando concretamente (que quer dizer empenhar e pagar) o que se estabelece.

Neste texto, procuramos aplicar algumas análises sobre o orçamento federal, a capacidade de executar o orçamento e como isso pode impactar positivamente ou negativamente na promoção da diversidade. A proposta de análise da execução orçamentária do Fundo Nacional de Cultura (FNC) pode ajudar a pensar na PEC 187/2019 que está tramitando no congresso nacional. Esta PEC prevê a extinção dos fundos públicos[1] (nas três esferas) que não forem ratificados pelo legislativo no ano seguinte à aprovação da PEC.

O texto, como normal no nosso legislativo, é genérico e dá margem a diversas interpretações. Senadoras e senadores fizeram algumas emendas para resguardar aqueles fundos que eles achavam importantes, mas não há, até o momento, garantias que os fundos de cultura estejam à salvo.

O FNC é um tipo de Unidade Orçamentária e pode ser acompanhado regularmente pelo portal da transparência do governo federal. A opção pela análise do FNC se dá pela sua centralidade na maior parte das políticas de promoção da diversidade cultural, ligadas às minorias e a ações com pouco ou nenhum retorno de imagem e visibilidade estando, por consequência, fora do radar dos mecanismos de renúncia fiscal existentes no país, os quais concentram o grosso do orçamento federal para a cultura. Nas três esferas de governo é nos Fundos Públicos que a maioria das ações voltadas para a diversidade encontram lugar, nos editais para periferias, populações ribeirinhas, microprojetos, comunidades, cultura negra, cultura indígena, pesquisas e estudos.

O FNC integra o Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura, e tem função semelhante aos fundos de outras áreas de atuação do Estado, como Saúde e Educação. A legislação que o criou aponta três objetivos centrais, todos eles ligados à equidade, à regionalização, à formação e à diversidade cultural (art. 4º da lei nº 8.313/1991). Deveria, pois, ser o principal instrumento em âmbito federal para a promoção da diversidade cultural.

Execução orçamentária do Fundo Nacional de Cultura

O quadro abaixo é oriundo de construção do próprio ODC, com base em dados do Painel de Execução Orçamentária do SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira), instrumento de registro, acompanhamento e controle da execução orçamentária do governo federal, e traz dados sobre o orçamento destinado ao FNC no período 2010 a 2019.

O maior percentual de execução do orçamento foi no ano de 2010, com pouco mais de 57% do valor empenhado, mas, ainda assim, é um resultado que podemos considerar fraco. Daí em diante, vemos uma redução cada vez maior do valor executado do FNC, com percentuais preocupantes em 2017, 2018 e 2019. No ano de 2019, não houve pagamento de nenhum valor do próprio orçamento, apenas despesas já previstas no orçamento no ano anterior (os tais “Restos A Pagar”). No orçamento de 2018, de R$ 1,135 bilhões previstos inicialmente, tivemos mais de R$ 450 milhões contingenciados, sobrando pouco mais de R$ 660 milhões. E deste valor, apenas cerca de R$ 53 milhões foram efetivamente executados (pouco mais de 7% do previsto).

A definição de prioridades, como no exemplo da porta com o qual iniciamos este texto, é outro ponto importante para analisarmos a efetividade das políticas de promoção de um determinado tema ou setor. Assim, além de identificar quanto conseguimos executar do orçamento em si do FNC, analisar quais os tipos de propostas ou ações mais receberam os recursos desse fundo ao longo dos anos, pode subsidiar a formulação de políticas mais objetivas para promover a diversidade, mas isso abordaremos em outro artigo mais adiante.

Analisando somente a vontade política expressa na execução orçamentária, na prática, entre 2010 e 2019, podemos dizer que ele ainda é mais uma promessa que uma realidade, mesmo que estejamos entrando no décimo quinto ano da aprovação da convenção da diversidade. E isso é um dos muitos desafios que temos pela frente nos próximos anos, cobrando dos governos ações efetivas que superem os discursos e promessas no que se refere à promoção da diversidade cultural.

[1] Para melhor entender o contexto de criação dos fundos e a sua multiplicidade recomendamos a leitura do artigo “Fundos federais: origens, evolução e situação atual na administração federal, de Osvaldo Maldonado Sanches e com link para acesso ao final do presente texto.

PARA APROFUNDAR SOBRE O ORÇAMENTO PÚBLICO:

ABREU, Welles Matias de. Gestão do Orçamento Público. Brasília: ENAP, 2014. Disponível em <https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/2207/2/Slides_Or%C3%A7amento.pdf>. Acesso em: 09 fev. 2020.

http://www.portaltransparencia.gov.br/entenda-a-gestao-publica/execucao-despesa-publica

https://www12.senado.leg.br/orcamentofacil

http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/download/6456/5040

PARA ACOMPANHAR A TRAMITAÇÃO DA PEC DOS FUNDOS PÚBLICOS (187/2019)

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139703

 

POR: José Oliveira Junior

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1 Comentário para “O Fundo Nacional de Cultura, o Estado e a Promoção da Diversidade”

  1. Avatar Giselle Dupin disse:

    Excelente artigo! Parabéns Júnior e ODC! Abraços

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